Epidemia

Cortar salários aos profissionais de saúde em plena pandemia?

OPINIÃO
Tânia Russo
Médica. Dirigente sindical.

«Não aceitaremos que as administrações e o Ministério da Saúde se demitam das suas responsabilidades, depois de nos enviar para a frente e nos impor a disponibilidade total (...) nenhum profissional de saúde pode ficar com dívidas de horas de trabalho ou ver o seu salário cortado nesta pandemia.»

 

A COVID-19 obrigou toda a sociedade, e em particular o Serviço Nacional de Saúde (SNS), a adaptar-se para acomodar a necessária resposta à pandemia. Centros de saúde, hospitais e serviços de apoio reorganizaram-se para colocar o foco na COVID-19, ao mesmo tempo que mantêm o esforço de não deixar para trás os doentes crónicos e os agudos não-COVID, que não desapareceram e continuam a necessitar de cuidados.

Foram impostas obrigações, impensáveis noutros tempos, como a proibição do gozo de férias e a ausência de limite ao trabalho suplementar (vulgo horas extraordinárias). Imposições que todos os profissionais de saúde já haviam adotado de livre iniciativa, ainda antes de os decretos-lei as tornarem oficiais. Porque sabem que sobre eles recai a responsabilidade de combater na linha da frente esta pandemia, e assumem essa responsabilidade sem reservas, mesmo que o preço a pagar seja o estar com a família, a própria saúde ou mesmo a vida.

Médicos, enfermeiros, assistentes e técnicos foram mobilizados para outras funções e serviços aos quais não pertenciam. A reorganização dos serviços obrigou a mais horas extraordinárias nas urgências e a menos horas em atividade programada, como consultas, exames e cirurgias. As urgências e consultas em todo o país conheceram uma drástica redução de afluência, fruto da reserva dos utentes em recorrer aos serviços por receio de se infetarem. Os serviços com menos afluência viram as suas equipas drasticamente reduzidas, abaixo dos mínimos de segurança para utentes e médicos, em nome de uma estratégia meramente economicista. Esta necessária reorganização da atividade médica faz com que nem sempre a carga horária semanal em atividade programada seja cumprida, mesmo que sobrem as horas extraordinárias em atividade não programada.

Este esforço adicional enxertou-se sobre um estado de esforço crónico a que os médicos vêm sendo sujeitos há largos anos. Não são novidade as longas jornadas de trabalho, o limite de horas extraordinárias ultrapassado logo nos primeiros três ou quatro meses do ano, a falta de material, os equipamentos obsoletos, a carência de recursos humanos. Uma degradação das condições de trabalho e da própria capacidade de resposta do SNS, que vem sendo sinalizada, mas a que os sucessivos governos têm respondido com desinvestimento, com desconsideração pelos profissionais e com a entrega do bem público e universal que é a saúde aos negócios privados.

Apesar do esforço exigido, e cumprido, incompreensivelmente chegam relatos de que há unidades de saúde que não estão a pagar o trabalho suplementar como tal. Em todo o país, vários colegas receiam, porque não têm garantias dos conselhos de administração, que as horas de trabalho que agora fiquem por fazer, por necessidade de reorganização dos serviços, lhes sejam descontadas ou seja exigida a sua reposição mais tarde sob a forma de trabalho gratuito.

Os médicos, e todos os profissionais de saúde – que desde a primeira hora se disponibilizaram para o pior cenário, que abdicaram de direitos, que aceitaram correr riscos, que se mobilizaram e reinventaram formas de produzir equipamentos – merecem respeito. Não aceitaremos que as administrações e o Ministério da Saúde se demitam das suas responsabilidades, depois de nos enviar para a frente e nos impor a disponibilidade total. A ministra tem de deixar claro que as horas extraordinárias da Saúde Pública e das Unidades de Cuidados Intensivos são para ser pagas na íntegra, que devem ser dadas condições para teletrabalho sempre que possível, que as equipas devem organizar-se em espelho rotativamente para que haja sempre profissionais disponíveis para substituir os que se possam infetar. E que nenhum profissional de saúde pode ficar com dívidas de horas de trabalho ou ver o seu salário cortado nesta pandemia.

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© Sindicato dos Médicos da Zona Sul