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No fio da navalha

Por Nídia Zózimo

O SNS tem conseguido dar resposta aos portugueses nesta situação pandémica, tentado priorizar a gravidade de cada situação. Não o fez dum modo perfeito mas se o conseguiu foi pelo esforço, sacrifício e resiliência dos seus profissionais.

Temos dos melhores profissionais de saúde do mundo em todas as áreas assistenciais. Esta verdade é reconhecida desde há décadas. O SNS é das instituições mais funcionantes em Portugal. Os profissionais de saúde portugueses são desejados em muitos dos países mais desenvolvidos.

Esta capacidade de resposta do SNS não pode ser considerada um dado adquirido a médio e longo prazo. Primeiro o esforço e resiliência, o sacrifício da vida individual das pessoas não são ilimitados. Depois estas capacidades dos profissionais não foram acompanhadas em muitas das instituições do SNS nem por reconhecimento, nem pelo pagamento da atividade efetuada, tão pouco pela reposição dos descansos não gozados. E poucos humanos conseguem trabalhar sempre em situações extremas. Até um bom elástico demasiado esticado rompe.

A tutela e o governo também não têm sido muito sensíveis ao problema dos recursos humanos. Tão pouco muitas administrações têm tido competência, coragem e capacidade técnica ou de diálogo para fazerem uma boa gestão dos recursos.

O SNS e cada instituição do SNS existem para darem resposta às necessidades de saúde dos portugueses. Esta época pandémica, sendo excecional, exigiu muitas respostas com poucos recursos. Partíamos duma escassez crónica em camas de intensivos e de atraso na reposição tecnológica e de recursos humanos, herança qua a troika deixou. E se algo de positivo a pandemia trouxe foi uma capacitação em camas de intensivos ao longo deste ano e meio. Foi lenta mas consistente. Nesse aspeto melhorámos muito. Não estando numa situação ideal, estamos certamente numa situação muito melhor. Mas foi das poucas rubricas na lista dos ganhos. O atraso da reposição tecnológica e de recursos humanos diferenciados manteve-se. Se foi disfarçado pela proibição de rescisão de contratos durantes os estados de emergência, o que impediu saída de profissionais em idade de maior produtividade e diferenciação, as condições atuais levarão certamente a perdas de capital humano, especialmente médicos. Nesse aspeto o SNS está no fio da navalha.

 

O que leva os especialistas a saírem do SNS ou a não ocuparem vagas em concursos, muitos deles em Lisboa? São vários os fatores

  1. Falta de oportunidades para progressão na carreira

  2. Falta de material tecnológico, que não é reposto quando fica obsoleto ou avaria

  3. Falta de condições de trabalho.

  4. Excesso de horas extra de urgência, e não gozo de folgas nem pagamento quando não é possível o gozo das mesmas (problema que se agravou com pandemia, pela falta de recursos humanos). O pagamento em alguns locais só se efetua se o médico rescindir contrato. O que é um incentivo para a rescisão.

  5. Horas perdidas em atos não médicos que são necessárias para os atos médicos. Exemplo: colheita de sangues nas enfermarias aos doentes internados, por falta de técnicos. Em alguns dos maiores hospitais do país isso ainda acontece, e é um dos motivos de não atratividade em algumas especialidades, essenciais, como Medicina Interna e outras especialidades clínicas. . E impede outra atividade. Por exemplo, nas especialidades com técnicas, como gastrenterologia, 700 horas ano a colher sangues, por médico, daria a possibilidade de fazer 2100 endoscopias e mais de 1000 colonoscopias, que estão com muitos meses de atraso, e Hematologia ou Pneumologia. Também impede aumentar o número de consultas. Estas especialidades têm patologia oncológica, em que o atraso de diagnóstico e tratamento podem impedir cura ou tempo de vida diminuídos.

  6. Diminuição de autonomia técnica imposta por chefias burocráticas. Se há atividade que não pode ser regida por números mas por ganhos é a saúde. A perda de poder dos Diretores de Serviço e a total dependência de gestores para atos simples mas essenciais é um facto.

  7. Administrações e direções escolhidas por critérios políticos e não de competência e sem poder negocial a nível da tutela. E assim sem poder negocial sobre respostas aos problemas clínicos nas instituições.

  8. Não o mais importante, mas muito importante. Os médicos mantém 40 horas no horário. Muitos fazem pelo menos 60 horas semanais. Não há aumentos salariais desde 2010. Não há estatuto de penosidade e risco. Temos no SNS uma mão-de-obra médica barata, sem proteção. Não é permitido ter dedicação plena, o que empurra muitos profissionais para acumulação com atividade privada. Como a atividade privada, e os hospitais privados cresceram muitos nos últimos 20 anos, paga melhor e dá boas condições técnicas para o exercício da profissão, muitos optam.

  9. Os médicos sentem que não são respeitados. Não o são pela tutela, pelo governo, pelas hierarquias e muitas vezes pelos utentes. São frequentemente vezes sujeitos a assédio moral, violência psicológica e/ou física, com desgaste progressivo. A exaustão emocional atingia 70 % em 2016, com taxas de burnout nos 40%. Neste momento pandémico certamente os números seriam mais altos.

  10. O inferno dos sistemas informáticos. Não por serem informáticos mas por serem disfuncionais. Temos uma miríade de programas, sem comunicarem entre si, que nos gastam a maioria do tempo que deveria ser aplicado na atividade médica. Um serviço essencial que o governo e o ministério atribuíram a privados e nos fazem perder a paciência todos os dias. E tempo. Se consideramos a informação e os sistemas de informação imprescindíveis neste momento civilizacional, também consideramos que como estamos, estamos mal.

Urge

  1. Repor recursos humanos diferenciados, médicos e outros profissionais.

  2. Repor especialistas e fixar os que estão no SNS obriga a melhorar salários e condições de trabalho. Obriga a que a tutela discuta e negoceie com as organizações médicas. Há anos que não há diálogo

  3. Repor recursos tecnológicos e manutenção dos atuais. Investir na inovação, porque a privada em várias áreas já o fez e a tecnologia é essencial para o tratamento adequado dos doentes segundo as boas práticas.

  4. Alterar os critérios de escolha dos dirigentes das instituições

  5. Reformar drasticamente os serviços de informação

  6. Repor a autonomia clínica, garante da qualidade de cuidados e de ganhos em saúde.

  7. Regulamentar a Lei de Bases do SNS

Estamos num tempo sem tempo. Qualquer hesitação em melhorar os serviços e instituições poderá significar perder um SNS tendencialmente gratuito e universal. Não há cuidados primários nem hospitais que tratem doentes sem profissionais em número adequado. Não há bons cuidados de saúde se os profissionais não se sintam reconhecidos pelo seu trabalho e competência. Estamos no fio da navalha. É a hora.

© Sindicato dos Médicos da Zona Sul